Oportunidades e desafios em ESG na nova Lei de Licitações
Texto que enfim entra em vigor traz mudanças importantes para empresas interessadas no mercado público
FERNANDA REIS
GUILLERMO GLASSMAN
PEDRO S. DE FRANCO CARNEIRO
Crédito da imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil
Em 2024, após prorrogações de vigência da Lei 8.666/1993, finalmente a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) passou a reger os novos certames licitatórios conduzidos no país. O novo texto traz mudanças importantes para as empresas interessadas no mercado público, com novos desafios e oportunidades, o que se torna mais relevante a partir de agora. Uma dessas dimensões em que a nova lei inovou e que terá grande impacto é o ESG (acrônimo do inglês Environmental, Social and Governance, já amplamente utilizado no Brasil).
Nesse campo, no âmbito dos processos de compras públicas no Brasil, adaptar-se é medida necessária para garantir a possibilidade de grandes negócios. A nova Lei de Licitações demonstra a intenção do legislador de incentivar práticas ESG por meio do processo licitatório, tanto com requisitos para participação em certames públicos, como, também, critérios de desempate e de preferência. Vejamos alguns deles.
Impactos ambientais
A legislação prevê que o estudo técnico preliminar, na fase preparatória da licitação, deverá contemplar a avaliação dos impactos ambientais (letra “E” da sigla ESG) e as respectivas medidas mitigadoras (Art. 18, § 1º, inciso XII). A nova lei destaca expressamente dois pontos: (i) baixo consumo de energia e de outros recursos naturais; e (ii) logística reversa e reciclagem de bens e refugos.
Além disso, o impacto ambiental do objeto licitado, quando mensurável, poderá ser considerado como critério no julgamento da licitação. Neste sentido, as empresas devem estar preparadas para identificar e mensurar as externalidades positivas e negativas dos seus negócios, incluindo adoção das melhores práticas de divulgação e transparência desses elementos.
Reserva de mão de obra
Os aspectos Sociais e de Governança, letras “S” e “G” da sigla ESG, estão bastante presentes quando se trata de exigências de cotas de mão de obra para grupos específicos de pessoas.
Na fase de habilitação, por exemplo, será exigido que o licitante comprove que cumpre a reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social (Art. 63, inciso IV).
Ainda, o contrato administrativo deverá conter cláusula com a obrigação de o contratado cumprir as exigências de reserva de cargos prevista em lei, para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social e para aprendiz (Art. 92, inciso XVII).
Também será necessário comprovar a reserva desses cargos durante toda a execução do contrato público (Art. 116). O não cumprimento da exigência de cotas poderá acarretar extinção do contrato (Art. 137, inciso IX).
Vale lembrar que a Lei nº 8.213/1991, em seu Art. 93, estabeleceu que as empresas com cem ou mais empregados estão obrigadas a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, de acordo com a proporção constante em Lei (até 200 empregados – 2%; de 201 a 500 – 3%; de 501 a 1.000 – 4%; de 1.001 em diante – 5%).
Conforme o Art. 429 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a cota de aprendizagem equivale ao percentual mínimo de 5% e máximo de 15% dos trabalhadores da empresa com funções que exijam formação profissional.
Além disso, a nova Lei de Licitações dispõe que o edital poderá exigir percentual mínimo da mão de obra para (i) mulheres vítimas de violência doméstica (Art. 25, § 9º, inciso I); e(ii) oriundos ou egressos do sistema prisional (Art. 25, § 9º, inciso II).
Para mulheres vítimas de violência doméstica já há regulamentação pelo Decreto Federal11.430/2023 que determina que os editais preverão o emprego dessa mão de obra em percentual mínimo de 8% das vagas (Art. 3º).
Para fins de contratação e cumprimento do percentual, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e o Ministério das Mulheres firmarão acordo de cooperação técnica com as unidades responsáveis pela política pública de atenção amulheres vítimas de violência doméstica que disponibilizará a relação de mulheres vítimas de violência doméstica que tenham autorizado expressamente a disponibilização de seus dados (Art. 4º).
Já para oriundos ou egressos do sistema prisional há as regulamentações do Decreto Federal 9.450/2018, estabelecidas ainda à época da Lei 8.666/1993. Existe a obrigatoriedade de exigência dessa mão de obra para contratos públicos de serviços, inclusive os de engenharia, com valor anual acima de R$ 330.000,00 (trezentos e trinta mil reais) (Art. 5º).
O licitante deverá apresentar na fase de habilitação a declaração de que, caso seja o vencedor, contratará oriundos ou egressos do sistema prisional. Deverá, também, ser emitida declaração do órgão responsável pela execução penal de que dispõe de pessoas aptas à execução do trabalho externo (Art. 5º, § 1º, inciso I). Em caso de contratação de preso em regime fechado, deverão ser apresentados documentos específicos de acordo com a Lei de Execução Penal (Art. 5º, § 2º).
Destaca-se que a contratação dessa mão de obra deve respeitar as seguintes proporções: até 200 empregados – 3%; de 201 a 500 – 4%; de 501 a 1.000 – 5%; de 1.001 em diante –6% (Art. 6º).
Componente local: mão de obra, materiais, tecnologias e matérias-primas
Outra previsão importante da nova Lei de Licitações é que se comprovada a ausência de prejuízos à competitividade do processo licitatório e à eficiência do contrato público, o edital poderá exigir a utilização de mão de obra, materiais, tecnologias e matérias-primas existentes no local da execução do contrato.
Trata-se de mudança importante quando falamos de ESG, principalmente considerando o aspecto Social e Ambiental, letras “S” e “E” da sigla, respectivamente. Para o Ambiental, pode haver a redução da necessidade de transporte de mercadorias por longas distâncias, por exemplo, o que resultaria em uma menor pegada de carbono e menor impacto ambiental. Já para o Social, há uma grande relevância para o fomento do desenvolvimento da comunidade local, evitando a concentração de capital.
Critérios de desempate
A nova Lei de Licitações estabelece que o desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho é o terceiro critério de desempate entre duas ou mais propostas (Art. 60, inciso III).
Esse critério de desempate foi regulamentado pelo Decreto Federal 11.430/2023 que estabeleceu que serão consideradas ações de equidade, respeitada a seguinte ordem: (i)medidas de inserção, de participação e de ascensão profissional igualitária entre mulheres e homens, incluída a proporção de mulheres em cargos de direção do licitante; (ii) ações de promoção da igualdade de oportunidades e de tratamento entre mulheres e homens em matéria de emprego e ocupação; (iii) igualdade de remuneração e paridade salarial entre mulheres e homens; (iv) práticas de prevenção e de enfrentamento do assédio moral e sexual; (v) programas destinados à equidade de gênero e de raça; e (vi) ações em saúde e segurança do trabalho que considerem as diferenças entre os gêneros (Art. 5º).
A previsão legal demonstra a preocupação da lei com o aspecto Social e de Governança, letras “S” e G” da sigla. Nisso, a nova lei está em sintonia com legislações recentes como a Lei 14.611/2023 que alterou a CLT e dispôs sobre a igualdade salarial e remuneratória entre mulheres e homens.
Margens de preferência
O texto da Lei prevê que poderá haver margem de preferência para bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis (Art. 26, inciso II) e, ainda, para empresas que adotem práticas de mitigação das mudanças climáticas (Art. 60, § 1º, inciso IV).
Destaca-se que a Lei 12.187/2009 (Política Nacional sobre Mudança do Clima) conceitua a mitigação como “mudanças e substituições tecnológicas que reduzam o uso de recursos e as emissões por unidade de produção, bem como a implementação de medidas que reduzam as emissões de gases de efeito estufa e aumentem os sumidouros”.
É clara a intenção de trazer o aspecto Ambiental, letra “E” do ESG, na medida em que demonstra a preocupação com o meio ambiente e incorpora a importância da contenção da crise climática para a manutenção das condições de vida na Terra.
A nova lei prevê expressamente que as licitações de obras e serviços de engenharia devem respeitar, principalmente, (i) a disposição final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos; (ii) mitigação por condicionantes e compensação ambiental; (iii) utilização de produtos, de equipamentos e de serviços que favoreçam a redução do consumo de energia e de recursos naturais; (iv) avaliação de impacto de vizinhança; (v) proteção do patrimônio histórico, cultural, arqueológico e imaterial; e (vi) acessibilidade para pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida (Art. 45).
Por fim, para o licenciamento ambiental de obras e serviços de engenharia licitados e contratados, haverá prioridade de tramitação nos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama).
A nova lei determina que, caso a execução da obra ou serviço de engenharia seja obstada pelo atraso na conclusão de procedimentos de licenciamento ambiental, por circunstâncias alheias ao contratado, será cabível a alteração do contrato para aplicação do restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro inicial (Art. 124, §2º).
Responsabilidade administrativa e idoneidade
A nova lei impõe a possibilidade de responsabilidade administrativa do licitante ou contratado não só decorrente de atos no certame licitatório ou na execução do contrato. Há a previsão de responsabilidade para as pessoas, físicas ou jurídicas, que se comportem de modo inidôneo de forma geral (Art. 155, inciso X).
Significa dizer que qualquer ato considerado como inidôneo pela Administração Pública pode culminar na declaração de inidoneidade para licitar ou contratar que terá prazo mínimo de três e máximo de seis anos (Art. 155, § 5º), sendo que a condição de reabilitação é o transcurso do prazo mínimo de três anos da aplicação da penalidade (Art.163, inciso III).
Considerando a esfera ambiental, a prática de infração especialmente grave, ainda que deforma alheia ao contrato administrativo, poderá ser considerada como conduta inidônea e impedir o licitante de licitar ou contratar.
A orientação jurídica vinculante da Advocacia-Geral da União (AGU) aprovada em22/12/2023 pelo presidente da República define que são consideradas especialmente qualificadas as infrações ambientais que correspondam aos tipos penais de maior potencial ofensivo, quando houver violação qualificada ao meio ambiente.
São elas: (i) infrações de incêndio e desmatamento, a lesão a áreas superiores a 1.000ha(mil hectares); (ii) infração de elaboração ou apresentação de documento falso a órgãos ambientais, a presença de dano significativo ao meio ambiente, em decorrência do uso da informação falsa, incompleta ou enganosa; e (iii) infração de maus-tratos a cães e gatos com a ocorrência de morte do animal.
A aplicação da sanção de declaração de inidoneidade dependerá da observância dos princípios constitucionais relacionados ao devido processo legal, de forma a garantir o exercício da ampla defesa e do contraditório. Vale dizer que infração ambiental especialmente grave poderá, ainda, ser considerada como de interesse público e utilizada como motivo para extinção do contrato público (Art.137, inciso VIII).
Conclusão
A relevância das ações ESG no âmbito da nova Lei de Licitações é clara e o texto inclui diversos requisitos e benefícios no processo licitatório com a Administração Pública.
Se preparar e identificar os possíveis aspectos ESG vinculados ao contrato, com eventual saneamento e regularização e, ainda, garantir o compliance ambiental, são fatores determinantes para enfrentar os desafios e aproveitar as oportunidades em contratos públicos.
FERNANDA REIS – Advogada, especialista pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e certificada em Mercado e Regulação do Carbono pela Travisan
GUILLERMO GLASSMAN – Advogado e professor, pesquisador em estágio pós-doutoral na USP. Doutor em Direito pela PUC-SP
PEDRO S. DE FRANCO CARNEIRO – Advogado e professor, especialista em Direito Ambiental pela USP e pela FGV. Diretor Jurídico da Fiesp para prática de Direito Ambiental