Eleitoral

Justiça traça primeiros limites ao uso de IA nas eleições municipais

Magistrados de ao menos quatro tribunais regionais já aplicaram multas ou determinaram remoção de conteúdos

Por Daniel Gullino — Brasília  

15/07/2024 04h30 Atualizado há um dia  

* O prédio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE): diretrizes estabelecidas pela Corte pautaram punições de TREs ao uso de inteligência artificial — Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 A Justiça começou a punir o uso irregular de inteligência artificial (IA) na pré-campanha das eleições municipais, em decisões que servem para traçar um limite — até agora inédito — do que poderá ser feito na disputa eleitoral. Juízes de ao menos quatro tribunais regionais eleitorais já aplicaram multas ou determinaram a remoção de conteúdos, a maioria dos casos por uso de deepfakes, quando imagens ou áudios são manipulados para inventar declarações ou situações.  

  As decisões seguem o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que aprovou regras para o uso da IA — a resolução afirma que a utilização deve ser identificada e proíbe qualquer uso de deepfake. O tema é uma das prioridades da gestão da presidente da Corte, Cármen Lúcia. Mas ainda há divergências sobre a forma de lidar com esses conteúdos.  

 Em Guarulhos, o prefeito Guti (PSD) foi multado em R$ 5 mil pelo TRE-SP, por ter publicado um vídeo que contou com IA. A postagem mostrava o prefeito numa multidão gerada artificialmente, e dizia que aquele foi “o dia que tiramos o PT do poder”. O partido acionou a Justiça Eleitoral.  

 Ao aplicar a punição, o juiz Gilberto Costa ressaltou que é de “conhecimento público a preocupação” do TSE com o uso da IA. “A manipulação da imagem por inteligência artificial no vídeo postado é evidente ante as falhas de imagem características do uso desta ferramenta. Todavia, não existe informação explícita e destacada de que o conteúdo foi manipulado nem da tecnologia utilizada”, escreveu.  

 A defesa de Guti não negou o uso de IA, mas alegou que não se tratava de propaganda eleitoral, porque não houve pedido de voto. O prefeito já foi reeleito e não pode disputar a eleição deste ano.

 Em Pernambuco, a Justiça Eleitoral determinou a derrubada de um perfil no Instagram que havia publicado deepfake com uma notícia falsa sobre o prefeito de Agrestina, Josué Mendes (PSB). O vídeo usava uma imagem adulterada do editor e apresentador do Jornal Nacional, da TV Globo, William Bonner.  

 Em Costa Rica (MS), o empresário e pré-candidato Waldeli Rosa (MDB) foi multado em R$ 10 mil por um vídeo manipulado do atual prefeito, Cleverson Alves (PP). Um áudio comparando a população a cachorros foi colocado num vídeo do prefeito divulgado num grupo de WhatsApp. A publicação foi de um funcionário da empresa de Rosa, e ele faz parte do grupo.  

 Para a juíza Laísa Marcolini, foi um “caso típico de malversação da tecnologia mediante deepfake, ou seja, sobreposição de voz em vídeo (...), com potencial claro de confundir e induzir em erro”.  

 Advogado de Rosa, Marcio Rodrigues, contesta a classificação de deepfake, argumentando que o conteúdo não foi inventado:  

 — Se qualquer tipo de alteração que se faça com áudio e vídeo for classificado como falsidade total, nada pode ser alterado mais.  

 Uma divergência de interpretação também fez o juiz Paulo Sorci rejeitar uma ação do MDB contra a deputada Tabata Amaral (PSB-SP), por um vídeo em que o rosto do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, aparece no corpo do personagem Ken, do filme “Barbie”. Sorci considerou que não houve deepfake, nem propaganda eleitoral antecipada negativa.  

 Elder Maia Goltzman, da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, diz que a Justiça Eleitoral está preparada para lidar com a IA, mas ressalta que a tecnologia está “sempre um passo à frente”.  

 — Assim como no combate à desinformação, estamos tendo que trocar a roda com o carro andando. As coisas se alteraram de maneira muito abrupta. A qualquer momento pode ser que tenha uma alteração de cenário brusca.  

 A primeira decisão judicial de repercussão envolvendo IA na campanha ocorreu em janeiro, no Paraná. A Justiça determinou que o WhatsApp impedisse o compartilhamento de áudio falso do pré-candidato Silvio Barros (PP) em que ele aparecia elogiando o atual prefeito, seu adversário.  

 Após a primeira decisão, o andamento da ação foi interrompido porque outra investigação sobre o caso, de caráter criminal, está em curso. Em paralelo, o WhatsApp informou à Justiça que não encontrou o conteúdo. A empresa ressalta, no entanto, que isso diz respeito só ao conteúdo original, e eventuais compartilhamentos criariam novos códigos de identificação.  

 Segundo o advogado de Barros, Diego Campos, a situação mostra a dificuldade de combater a desinformação dentro de aplicativos de mensagens.  

 — Os maiores problemas são WhatsApp, Telegram, mensagens instantâneas, que têm talvez até maior alcance que outras redes sociais. Não temos encontrado meios, e o caso do Silvio é um exemplo, de fazer com que o WhatsApp consiga fazer esse bloqueio de compartilhamento.  

 Um dos primeiros casos de deepfake na política brasileira levou a uma investigação criminal. Em fevereiro, a Polícia Federal fez uma operação para identificar os envolvidos na criação e divulgação de um áudio falso do prefeito de Manaus, David Almeida (Avante). A apuração continua.  

 Enquanto isso, o projeto de lei que regulamenta a IA no Brasil teve a tramitação dificultada no Senado. A votação, que prevê que as plataformas remunerem os produtores de conteúdo por direitos autorais, estava prevista para a semana passada na comissão especial que trata do tema, mas foi adiada sem nova data.  

 Se antes a intenção era analisar a proposta antes do recesso parlamentar, o presidente do colegiado, senador Carlos Viana (Podemos-MG), agora diz que a votação pode ficar para depois das eleições.  

 O texto não envolve as eleições. Por isso, o relator, Eduardo Gomes (PL-TO), diz que não há prejuízo:  

  — O TSE tem ficado completamente ligado neste assunto. Nós estivemos com a ministra Cármen Lúcia falando sobre o assunto. Há um grupo de regulamentação, há um grupo acompanhando. O que nós não podemos é tentar acelerar uma votação que não vai ter efeito direto.  

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