A ascensão do metaverso e a crescente popularidade de ambientes virtuais tridimensionais têm suscitado relevantes reflexões no âmbito jurídico, especialmente no que concerne à proteção dos direitos de imagem e à representação do usuário neste novo espaço digital.
O metaverso é um conceito que descreve ambientes digitais imersivos e interconectados, onde usuários podem interagir entre si e com o espaço virtual por intermédio de avatares, dispositivos de realidade aumentada (AR) e realidade virtual (VR). Plataformas como Decentraland, Horizon Worlds e VRChat já oferecem experiências interativas que transcendem os modelos tradicionais de redes sociais, criando um ecossistema no qual a identidade digital dos usuários ganha centralidade.
Originalmente popularizado em obras de ficção científica, o metaverso tem ganhado materialidade por meio de plataformas como Roblox, Decentraland e Horizon Worlds, que oferecem espaços digitais de socialização, trabalho e entretenimento. Insta salientar que o metaverso não se limita a um único ambiente, mas representa uma rede de mundos virtuais acessíveis via internet, suportada por tecnologias de blockchain, criptomoedas, inteligência artificial e computação gráfica.
Nesse sentido, o uso de avatares no metaverso suscita questões complexas sobre a proteção de direitos de imagem. Isso porque, o aprimoramento das ferramentas de interação virtual e o avanço da tecnologia permitem a criação de avatares realistas, podendo-se incorporar elementos visuais e comportamentais que refletem a identidade do usuário, com representações da própria imagem, que pode ser extremamente fiel às características físicas observadas no mundo real.
Na contramão do que ocorre com fotos ou vídeos, o avatar está inserido em um meio dinâmico e interativo, o qual é capaz de ser alterado em tempo real, o que, certamente, coloca em evidência o controle e a proteção da imagem do usuário em um ambiente virtual de acesso aberto e compartilhado.
O presente artigo cinge-se à análise dos principais desafios jurídicos que envolvem o direito de imagem no âmbito do metaverso, trazendo à tona os dilemas enfrentados pelos operadores do direito ao tratar de situações que envolvem a utilização não autorizada da imagem nestes ambientes virtuais.
O Direito de Imagem no Ordenamento Jurídico Brasileiro
O direito de imagem no Brasil é tratado como um direito fundamental e de personalidade assegurado pela Constituição Federal e pelo Código Civil. A Carta Magna, em seu artigo 5º,incisos V e X, garante a inviolabilidade da imagem do indivíduo e o direito à indenização pelo seu uso não autorizado. O Código Civil, por sua vez, na inteligência do artigo 20, reforça tal proteção ao vedar expressamente a utilização da imagem do indivíduo sem autorização para fins comerciais ou lesivos à honra, exceto quando houver interesse público.
Além disso, a LGPD (Lei nº13.709/2018) estabelece diretrizes para o tratamento de dados pessoais, incluindo elementos visuais que possam identificar um indivíduo. O artigo 7º da referida lei exige consentimento para o tratamento de dados pessoais, o que inclui informações biométricas e outras características identificáveis de um usuário.
Note-se que a autorização expressa e o consentimento para utilização da imagem daquele que é titular do direito de imagem possui significativa relevância, razão pela qual qualquer uso desautorizado que possa prejudicar direitos da personalidade de um indivíduo, assim como quando tenham finalidades comerciais, são comumente tratados de maneira mais rígida no nosso sistema jurídico.
Nesta linha, Carlos Alberto Bittar leciona que “A imagem, como exteriorização do aspecto físico da pessoa, em conformidade com o seu valor peculiar, constitui o objeto do direito de imagem, o qual lhe assegura o exclusivo poder sobre sua utilização, independentemente de uso indevido e prejuízo, impedindo qualquer forma de uso não consentido.”[1].
Sobreleva-se, neste ponto, que a doutrina pátria reconhece a imagem como um aspecto da personalidade, compreendendo não apenas à aparência física, mas também a traços de identidade e a outras características de forte presença que possam identificar e fazer associação à determinada pessoa.
Contudo, a legislação vigente não trata expressamente da proteção de avatares ou de outras formas de identidade digital, gerando dúvidas sobre sua aplicabilidade a essas novas formas de representação virtual.
Essa proteção, historicamente aplicada a retratos físicos, fotografias e vídeos, portanto, exige reinterpretação à luz do contexto digital, em que a representação das pessoas ocorre frequentemente por meio de avatares ou imagens personalizadas em ambientes como o metaverso.
Surge, assim, a questão: em que medida um avatar pode ser protegido pelo direito de imagem? E como se aplicam as normas vigentes a uma identidade digital que pode ser altamente dinâmica?
Avatares e Representação no Metaverso: A Conexão com o Direito de Imagem e Implicações Jurídicas
Consoante adiantado alhures, no metaverso, a presença de indivíduos se dá através de avatares, representações gráficas que podem ser criadas com o fito de se assemelhar ao usuário real ou, em certos casos, expressar identidades completamente distintas.
Conforme Matthew Ball explora em The Metaverse: And How it Will Revolutionize Everything[2], a representação visual dos avatares e o grau de personalização disponível nesses ambientes conferem ao usuário uma extensão digital de si mesmo, mas também expõem a identidade a riscos legais. Segundo afirma, podem ser criados para espelhar fielmente a aparência do usuário, incluindo características físicas, estilo de vestimenta e até expressões faciais.
Sob esta ótica, muito embora o avatar seja uma construção digital, sua utilização pode implicar diretamente na aplicação dos princípios jurídicos do direito de imagem.
A discussão jurídica sobre a violação do direito de imagem no metaverso surge quando avatares, que representam uma projeção da identidade de seus usuários, são utilizados de maneira indevida, seja por reprodução não autorizada ou pelo emprego em contextos, que podem comprometer a honra e a reputação desse indivíduo, gerando impactos que vão além do ambiente virtual e alcançam o mundo real. Isso é especialmente relevante para influenciadores digitais e figuras públicas, cujas representações digitais detêm maior valor mercadológico.
A proteção do direito de imagem no metaverso dependerá da forma como o avatar se relaciona com a identidade do usuário. Caso a representação digital for fidedigna à aparência física do titular, há fundamentos para a aplicação da legislação tradicional sobre imagem. Entretanto, avatares genéricos ou que não permitam a identificação direta do indivíduo podem escapar dessa proteção.
A fim de ilustrar os desafios do uso indevido de imagens e avatares no ambiente virtual, traz-se à lume os seguintes casos:
No final de novembro de 2021, uma usuária relatou abuso e violação de privacidade ocorrida na plataforma virtual Horizon Worlds (Meta), em que seu avatar foi submetido a ações invasivas por outros avatares. O incidente gerou questionamentos sobre a responsabilidade das plataformas em monitorar e regulamentar interações abusivas que violam os direitos dos usuários, incluindo o direito de imagem e a privacidade.
Em situação análoga, desta vez envolvendo a plataforma VRChat, foram relatados casos de assédio virtual, em que os avatares foram utilizados para realizar gestos e falas ofensivas. Tais atos, quando gravados e divulgados sem consentimento, configuraram violação do direito de imagem e resultaram em processos por danos morais, destacando a necessidade de regulação adequada para proteger os usuários desses espaços.
Nesse diapasão, Pablo Stolze Gaglianoe Rodolfo Pamplona Filho elucidam que “A internet e os ambientes digitais têm se tornado novos campos de batalha para a defesa da imagem. A violação do direito de imagem no mundo virtual, seja por meio da reprodução indevida de fotografias ou da criação de perfis e avatares sem autorização, gera danos tanto à pessoa física quanto à sua reputação, sendo passível de indenização.”[3].
Destarte, o indivíduo que se sentir lesado com a violação de seu direito de imagem no metaverso, por meio da criação e uso de avatares, pode levar a questão ao judiciário, destacando-se o fato de que o pleito de indenização pelo uso não autorizado da imagem é plenamente cabível, ainda que sem a efetiva comprovação de dano.
Insta registrar, ainda, que o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) regula a responsabilidade dos provedores de aplicação, determinando que eles só podem ser responsabilizados por conteúdos ilícitos caso não removam o material após notificação judicial. Isso significa que, caso um avatar seja utilizado de forma indevida, a vítima pode notificar a plataforma, que deve adotar medidas para evitar a perpetuação do dano. No entanto, ainda há vácuo regulatório sobre a necessidade de monitoramento preventivo por parte dessas empresas.
Desafios Jurídicos
Os desafios para a regulamentação do direito de imagem no metaverso são significativos, especialmente porque a legislação atual foi desenvolvida e pensada para um contexto offline e para representações estáticas. Conforme James Grimmelmann analisa em “Virtual Worldsas Comparative Law”[4],os mundos virtuais operam em uma lógica própria que desafia a aplicação direta das normas jurídicas tradicionais. A questão de até que ponto o avatar pode ser considerado uma extensão da imagem do usuário se torna ainda mais complexa à medida que o metaverso oferece representações altamente personalizáveis e independentes.
No Brasil, a jurisprudência ainda não consolidou entendimento específico quanto à aplicação do direito de imagem no que tange às representações digitais em ambientes de metaverso, o que, certamente, gera insegurança jurídica. A carência de legislação específica voltada à utilização de avatares deixa o tema à mercê de interpretações e analogias com normas existentes sobre imagem, privacidade e proteção de dados.
Assim, fato é que o ordenamento jurídico brasileiro deve avançar para proteger não apenas a imagem física do indivíduo, mas também qualquer representação digital que reflita sua identidade de forma que impacte sua personalidade e privacidade.
Considerações Finais
A expansão do metaverso e o uso de avatares representam um novo desafio para o direito de imagem, demandando atualização das normas e uma interpretação mais dinâmica dos direitos de personalidade no Brasil. Enquanto a legislação específica não é desenvolvida, é fundamental que o direito de imagem e as normas da LGPD sejam interpretados de maneira ampla para assegurar que os direitos dos usuários sejam respeitados, mesmo em contextos virtuais. A proteção da identidade e da privacidade no metaverso é uma responsabilidade compartilhada entre legisladores, plataformas e Poder Judiciário, que devem se adaptar ao cenário digital, cada vez mais em voga.
[1]BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p. 75
[2] Ball, Matthew. The Metaverse: And How it Will Revolutionize Everything. Liveright Publishing, 2022.
[3]GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direitos da personalidade. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 120
[4] Grimmelmann, James. “Virtual Worlds as Comparative Law.” NYLS Legal Studies Research Paper Nº. 07/08-11, 2008.