Apesar de mais fácil, a contratação por dispensa de licitação não é desregrada.
A história das licitações no território brasileiro se iniciou em 1862, por meio do Decreto nº 2.926,que as introduziu no país, visando ao início de uma gestão pública mais eficiente.
Posteriormente, em 1993, surgiu a famosa lei nº 8.666, que esteve vigente por muitos anos subsequentes regendo as licitações e contratos administrativos, acompanhada da Lei nº 10.520/2002,que tratava especificamente da modalidade de licitação denominada pregão.
Contudo, em 2021, entrou em vigor a lei nº 14.133, que apenas revogou a legislação anterior em dezembro de 2023 e, portanto, passou a ser plenamente eficaz e exigível.
A nova legislação trouxe mudanças consideráveis ao antigo jeito de fazer licitação, inclusive, implementando medidas que há muito já eram pleiteadas.
Sobre o tema aqui debatido, a lei de 1993, previa que, nos casos de emergência ou de calamidade pública “quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos” poderia haver a dispensa de licitação, nos termos do artigo 24, inciso IV.
Com o advento da nova lei, essa dispensa passou a ser regida sob a seguinte redação:
Art. 75. É dispensável a licitação:
[...]VIII - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso;
Perceba-se, então, que o prazo possível para a conclusão de obras e serviços nessas condições aumentou de 180 (cento e oitenta) dias para 1 (um) ano, contados a partir da data de ocorrência da emergência ou da calamidade (informação importante a ser observada, uma vez que a contagem do prazo pode afetar diretamente a legalidade das contratações emergenciais, eis que esses prazos são frequentemente fiscalizados pelo TCU, vide Acórdão nº 1188/2021). Além disso, não se faz mais menção à necessidade de que esses dias sejam “consecutivos e ininterruptos”.
Outra inovação trazida foi a vedação prevista no final do trecho retromencionado, que impossibilita a “recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso”.
Foi justamente isso que motivou a Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelo partido Solidariedade, ADI 6890, cuja relatoria foi destinada ao Ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal.
O partido alegou que haveria inconstitucionalidade no fato de se vedar a recontratação de uma empresa contratada com base em dispensa de licitação fundamentada em situação emergencial ou de calamidade pública, uma vez que isso violaria o disposto no caput do artigo 37 da Constituição Federal por estar em dissonância com os princípios da impessoalidade, da moralidade e da eficiência, que devem ser observados pela Administração Pública.
Isso posto e iniciado o julgamento, o Ministro relator proferiu voto que começou explicando a importância do procedimento licitatório, citando, inclusive, a doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro e um julgado anterior do tribunal, sob a relatoria do Ministro Eros Grau (ADI 2.716/RO), que merece destaque no trecho a seguir:
A licitação é um procedimento que visa à satisfação do interesse público, pautando-se pelo princípio da isonomia. Está voltada a um duplo objetivo: ode proporcionar à administração a possibilidade de realizar o negócio mais vantajoso – o melhor negócio – e o de assegurar aos administrados a oportunidade de concorrerem, em igualdade de condições, à contratação pretendida pela administração. (...) Procedimento que visa à satisfação do interesse público, pautando-se pelo princípio da isonomia, a função da licitação é a de viabilizar, através da mais ampla disputa, envolvendo o maior número possível de agentes econômicos capacitados, a satisfação do interesse público.
Feitas as referidas considerações, adentrou-se às disposições da Constituição Federal, mais especificamente no âmbito do artigo 37, XXI, que determina que as contratações feitas pela Administração Pública, direta e indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do DF e dos Municípios, deverá ser realizada mediante processo de licitação pública, com exceção de casos especificados na legislação.
Uma dessas exceções seria justamente o caso de emergência ou de calamidade pública, tratado com certo receio pelo doutrinador Marçal Justen Filho, pois, para o autor, “o argumento de urgência sempre poderia ser utilizado” [1].
Por isso, Marçal deixa claro que “o dispositivo enfocado refere-se aos casos em que o decurso de tempo necessário ao procedimento licitatório normal impediria a adoção de medidas indispensáveis para evitar danos irreparáveis. Quando fosse concluída a licitação, o dano já estariaconcretizado”2. Grosseiramente falando, é como se esse tipo de dispensa se equiparasse a um pedido de tutela de urgência no âmbito da justiça, em que a concessão da liminar se faz necessária para que o dano não seja consumado antes do término da ação, tornando-a infrutífera.
Nesse contexto, Zanin menciona que “Os órgãos de controle também procuraram coibir eventual abuso na interpretação da dispensa de licitação nos casos de emergência ou calamidade pública, notadamente nos casos da ‘emergência fabricada’ pelo agente público” fazendo referência à Orientação Normativa 11/2009 da Advocacia Geral da União – em que pese possua nuances distintas para evitar a “emergência fabricada” – que determina:
A contratação direta com fundamento no inc. IV do art. 24 da lei nº 8.666, de1993, exige que, concomitantemente, seja apurado se a situação emergencial foi gerada por falta de planejamento, desídia ou má gestão, hipótese que, quem lhe deu causa será responsabilizado na forma da lei.
Com base nisso, o Ministro relator aduziu que essa excepcionalidade fundamentou a previsão do prazo máximo para vigência dos contratos oriundos desse tipo de dispensa de licitação, além de impossibilitar a prorrogação dos respectivos contratos emergenciais. Também ressaltou que, no regime da lei nº 8.666/93, esse impedimento foi relativizado em algumas situações excepcionais: “quando ultrapassado o limite legal de 180 dias e remanescia a situação emergencial ou calamitosa, com grave risco de prejuízo para os serviços públicos e aos particulares”.
Além disso, o Ministro destacou que a legislação anterior possibilitava outra forma de se ultrapassar o limite legal de 180 (cento e oitenta) dias previsto para a duração dos contratos emergenciais: “como não existia impedimento para que a empresa beneficiada pela contratação direta fosse recontratada, a consequência foi a permanência de contratações diretas com seguidas recontratações de empresas beneficiadas pela dispensa de licitação em situação emergencial ou calamitosa”.
Foi exatamente visando coibir quaisquer abusos, que a parte final do inciso VIII do artigo 75 da lei nº 14.133/21 foi inserido. O próprio relator aduziu que, em sua compreensão, esse texto serve como “verdadeiro instrumento de controle tanto da Administração Pública quanto do particular, coibindo situações em que sucessivas contratações emergenciais configuravam burla à regra da obrigatoriedade da licitação” e menciona o motivo:
“Da Administração Pública, que agora terá o prazo de 1 (um) ano para adotaras medidas imprescindíveis para a realização de licitação substitutiva à contratação direta, caso necessário. Do particular, que não terá incentivo para adotar medidas contrárias ao interesse público, como a execução apenas parcial do objeto contratual no prazo legal com o objetivo de, ao final, se beneficiar de outra contratação direta”.
Para instruir o julgamento, foram ouvidas as informações prestadas tanto pela Presidência da República quanto pelo Procurador-Geral da República e pelo Senado Federal, que ofereceram uma interpretação restritiva quanto à extensão dessa recontratação vedada, no sentido de que a proibição “(i) não impede que a empresa beneficiada participe de futura licitação para execução de objeto contratual correlato ao da contratação direta; e (ii) tampouco impede que a empresa beneficiada seja contratada diretamente por fundamento diverso, inclusive outra situação emergencial ou de calamidade pública”.
Ou seja, a vedação se restringe à recontratação fundamentada na mesma situação emergencial ou calamitosa que motivou a dispensa original, mas a contratações com base em outros fundamentos ou situações emergenciais distintas são permitidas. Com base nisso, o relator julgou parcialmente procedente a ADI e concluiu que:
“com fundamento no art. 37, caput, e inc. XXI, da Constituição Federal, entendo necessário conferir interpretação conforme ao artigo 75, inc. VIII, da Lei nº 14.133/2021, sem redução do texto, para restringir a vedação prevista no dispositivo à recontratação fundada na mesma situação emergencial ou calamitosa que motivou a primeira dispensa de licitação. Na minha compreensão, essa interpretação afasta as alegações de violação aos princípios da eficiência e da economicidade ou de ocorrência de discriminação indevida, pois (i) não limita os instrumentos à disposição da Administração Pública para a superação da situação emergencial ou calamitosa que inicialmente motivou a dispensa de licitação; e, principalmente, (ii) não restringe em demasia o direito do particular, que pode participar de futura licitação para execução de objeto contratual relacionado à contratação direta ou mesmo ser contratado diretamente por outro fundamento, inclusive no caso de situação emergencial ou calamitosa diversa da primeira. (g.n.)
Somado a isso, o Ministro Luís Roberto Barroso trouxe uma ressalva incorporada ao voto de Zanin e acompanhada por Gilmar Mendes e demais magistrados, qual seja: em casos nos quais o contrato emergencial durar menos que 1 (um) ano, será possível sua prorrogação ou recontratação, desde que respeitado o limite de 1 (um) ano.
Contudo, há um ponto de atenção que inclusive faz parte das críticas doutrinárias: não há regulamentação detalhada sobre a recontratação. Essa ausência de normas claras, como aponta Marçal Justen Filho, em seu livro “Curso de Direito Administrativo”, pode gerar insegurança jurídica e aumentar o risco de judicialização. Desse modo, é importante que as regras do jogo estejam claras desde o começo, a fim de se evitar conflitos que seriam desnecessários caso houvesse claro respaldo legal.
Ainda, é importante ressaltar que o próprio TCU, em seu Acórdão nº 2613/2013, já decidiu que o princípio da continuidade dos serviços públicos pode justificar a adoção de medidas excepcionais. Veja-se, no entanto, que esses balizadores não são impeditivos dessa continuidade, mas servem para dar respaldo às decisões adotadas sem possibilitar qualquer tipo de excesso que beneficie uns e desprivilegie outros.
Conclusão
Com isso, percebe-se a importância do entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de encontrar uma forma de atender às necessidades da Administração Pública, sem prejudicar e nem favorecer quaisquer particulares, preservando os princípios administrativos que, de acordo com a Constituição Federal, devem ser respeitados pelo poder público.
No entanto, é evidente que falta regulamentação mais específica sobre a própria recontratação, eis que a mera menção dessas condicionantes no final do inciso VIII do artigo 75 da Lei 14.133/21não joga a luz necessária sobre o tema e gera um vácuo entre a situação fática e o direito aplicável.
Assim, apesar de já haver avanço nas medidas que tentam impedir a prática de abusos decorrentes de situações calamitosas e emergenciais, em virtude da necessidade de dar continuidade à prestação dos serviços públicos, é importante ressaltar que ainda falta um debruçar mais aprofundado sobre a matéria para que, mesmo as recontratações, tenham suas regras previamente estabelecidas.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters, p. 1039.
[2] Idem, p. 1040-1042.